Um caso notório de  aberratio ictus, ocorreu em 1963, no Senado Federal.

Arnon de Mello fora ameaçado por seu desafeto, como ele, senador por Alagoas, Silvestre Péricles. Este disse mais de uma vez que o Arnon de Mello não iria discursar, pois seria impedido.  Quando ocupou a tribuna do Senado, em razão da ameaça, estava armado. No momento em que Silvestre Péricles avançou na direção da Tribuna, Arnon de Mello disparou. O tiro matou o senador do Acre, José Kairala, que nada tinha com a hostilidade.

O caso é um notório exemplo de aberratio ictus, o erro na execução, tratado no art. 73, do Código Penal. É a hipótese em que o autor, por erro na execução, “ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa”. Nesse caso, o autor responde como se tivesse atingido a pessoa que pretendia ofender.

O caso é minuciosamente contado por Mário Sérgio Conti (1999, pp. )

A rivalidade de ambos se intensificou quando Arnon de Mello se candidatou ao governo de Alagoas,  em 1950, contra o candidato do então governador, Silvestre Péricles. Este, nas campanhas pelo interior, chamava Arnon de “o candidato de lábios carmesins”, fazendo insinuações sobre sua masculinidade (Conti, 1999, p. 22)

Essa rivalidade tem um episódio escatológico, impressionante. Vencida a eleição por Arnon de Mello, o último ato de Silvestre Péricles, como governador, foi prometer a liberdade a cada preso que “conseguisse defecar ao menos um quilo”. Vários presos foram soltos e dezenas de quilos de fezes foram espalhadas no palácio do governo, antes da posse de Arnon. Leda e Arnon só se mudaram para o Palácio mais de um ano depois (Conti, 1999, p. 23).

Em 1962, Arnon de Mello elegeu-se senador e tomou posse em 1º de fevereiro de 1963. Silvestre Péricles, que era senador, disse que ele não entraria no plenário: “É um maricas. Não virá porque não é homem para enfrentar-me”.

No dia 4 de dezembro, dez meses depois de tomar posse, Arnon de Mello pediu a palavra para um discurso e Silvestre Péricles partiu para cima dele, segurando um revólver calibre 45. Arnon disparou duas vezes, mas não acertou seu desafeto.

Um dos tiros matou José Kairala.

José Kairala era suplente de senador e aquela era sua última sessão, pois o titular reassumiria o cargo na próxima sessão. A vítima tinha levado familiares para verem sua despedida do senado. (Conti, 1999, pp. 25-26)

Uma admirável sequência de fotos feitas pelo fotógrafo do Estadão, Efraim Frajmund, foi decisiva para a absolvição de Arnon, pois mostrava que Silvestre Péricles estava com o revólver na mão esquerda (Conti, 1999, p. 57). Ele agiu repelindo a iminente agressão que iria sofrer de Silvestre Péricles. Nesse caso, por força do art. 73, CP, ele respondeu como se tivesse matado a pessoa que pretendia, Silvestre Péricles, e não a pessoa atingida, José Kairala. Daí a legítima defesa.

 

 

CONTI, Mário Sérgio. Notícias do Planalto: a imprensa e Fernando Collor. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.