Introdução

A história da pena confunde-se com a história da própria humanidade,[1] sendo impossível situar um marco inicial da sanção penal. O que se pode afirmar é que a prisão, como pena, é relativamente recente, sob a perspectiva histórica. O encarceramento não era considerado pena, mas tinha outras funções; era, principalmente, um modo de custodiar o indivíduo até a aplicação da pena cabível, como as penas corporais ou de morte.[2]

Antiguidade [3]

Como já dito, na Antigüidade não havia a pena de prisão, cumprindo o encarceramento um papel diverso. Predominavam as penas de morte, corporais (açoites e mutilações) e as infamantes. “Por isso, a prisão era uma espécie de ‘ante-sala’ de suplícios, pois se usava a tortura, freqüentemente, para descobrir a verdade.”[4]

A detenção do indivíduo cumpria a função de custodiar o condenado até o momento de execução da pena.

Na Antigüidade, havia nítido caráter religioso da pena, funcionando a pena como forma de aplacar a ira dos deuses ou forma de expiação da culpa decorrente do delito.[5]

Idade Média[6]

Também não foi na Idade Média que surgiu a privação de liberdade foi usada como sanção penal. As penas eram predominantemente corporais e de morte. Nesse período, aponta-se que a execução das penas corporais serviam como espetáculo social.[7]

Na idade média, em razão da forte confusão existente entre o poder e a Igreja, a pena tinha um nítido caráter religioso, funcionando como forma de expiação da culpa.

Nesse período histórico, houve grande influência do Direito Canônico, notadamente a partir do séc. XII, em virtude do aumento do poder da igreja.[8]

Idade Moderna[9]

Em razão de um grande alastramento da pobreza, durante os séculos XVI e XVII, a Europa experimentou um drama social com a proliferação de pequenos delitos patrimoniais, cometidos por miseráveis que perambulavam pelas cidades. Por exemplo, na França foram tentadas diversas reações contra esse fenômeno, ora ameaçando com a pena de morte (1525), ora com o trabalho forçado nos esgotos (1532); foram expulsos da cidade (1554), depois condenados às galés (1561), até a decisão de que os mendigos deveriam ser açoitados (1606).[10]

Com o passar do tempo, foram criados diversos institutos de correção, que podem ser tidos como o surgimento embrionário da pena privativa de liberdade.[11]

Nesse período surgiu uma espécie de pena bastante cruel, que a chamada “pena de galés”, que eram barcos nos quais os condenados eram acorrentados nos porões e obrigados a remar. Tal pena existiu do séc. XVI até o XVIII.[12]

As reformas do Iluminismo

Movimento de idéias  com origem no século XVII, mas difundido no século XVIII, o chamado de “século das luzes”, o Iluminismo (tradução da palavra alemã Aufklärung) tem como objetivo principal estabelecer a soberania da razão sobre a autoridade e os preconceitos. Embora com caráter heterogêneo e de influência eclética, visava destruir a tirania nas suas mais variadas formas.[13]

Contrapondo-se às principais características da Idade Média, ainda presente na Idade Moderna, como o excessivo poder clerical, a teologia como único caminho à verdade, a superstição, a ignorância e o despotismo, o Iluminismo foi a era da razão. Os pensadores iluministas preconizaram uma sociedade mais racional e humana, por não mais ser concebível crenças e instituições, que não se sustentassem pela força da razão e que servissem de degradação aos seres humanos.[14]

Dentre os filósofos do Iluminismo, destacam-se Rosseau, Montesquieu, Voltarie e Diderot.[15] Contudo, a mais importante obra, no que se refere ao Direito Penal, é o Dos delitos e das penas, de Cesare Bonesana, o Marques de Beccaria.

Costuma-se criticar a obra de Beccaria, com a afirmativa de que ele não escreveu nada de original. É certo que Beccaria não inovou, teoricamente, nas idéias defendidas. Todavia, há que se ter consciência da verdadeira dimensão de seu livro.

O grande valor da obra de Beccaria, é que o sistema penal do antigo regime é o objeto único de seu livro, ao contrário de Montesquieu, que o trata apenas em alguns capítulos de sua obra geral, e de Voltaire que ataca o sistema penal em casos concretos, como na defesa de Juan Calas.[16]

Dos delitos e das penas não é um livro de dogmática penal, ou um comentário sobre o direito penal objetivo; não é, propriamente, obra de um intérprete da lei, mas uma análise crítica e valorativa, do sistema penal vigente. O autor não faz interpretação dos significados do direito penal positivo, e sim ataca a sua iniqüidade. Beccaria fez, portanto, uma obra política, sem pretensões acadêmicas, mas com o intuito de persuadir.

A relevância de seu livro é menos filosófica e jurídica, e mais política,[17] pois sua obra foi um poderoso e eficaz panfleto[18] contra o sistema penal vigente. Eficaz, porque, em razão de sua grande repercussão,[19] exerceu influência direta nas reformas penais.

Com efeito, a tortura foi abolida em diversos Estados: Rússia, em 1766, com a reforma penal empreendida por Catarina II; Áustria, em 1776, por ordem da imperatriz Maria Teresa; França, em 1780, por ordem de Luís XVI; no reinado de José II, por seu decreto de 11 de setembro de 1789; na Toscana, por meio da reforma penal de Pedro Leopoldo, em 1786, em cujo preâmbulo, se vê incontestável influência de Beccaria.[20]

 

Em sua obra, destaca-se a crítica contundente contra a pena de morte, por três razões: ilegitimidade, inutilidade e desnecessidade.[21]

Também escreveu sobre a questão da proporcionalidade da pena. Ddefendeu o princípio da personalidade da pena, pois à época era possível que a pena atingisse descendentes do condenado, como ocorria com a pena de infâmia, com o confisco dos bens do suicida.[22]

Sua obra, atualmente, é mais conhecida pelo veemente combate à tortura como meio de provas. Ressalte-se que a tortura era legal, sendo disciplinada pela lei.[23]

Brasil: as reformas do Código Penal de 1940

Em 1984, duas leis introduziram importantes modificações na pena. A Lei 7.209/84 deu nova redação a Parte Geral do Código Penal (art. 1º ao 120). Já a Lei 7.210/84 instituiu a Lei de Execução Penal (LEP).

A Lei 7.209/84, segundo Bitencourt, “humanizou as sanções penais e adotou penas alternativas à prisão, além de reintroduzir no Brasil o festejado sistema dias-multa.”[24]

Depois, veio a lume a Lei 9.714/98, que ampliou a incidência das penas restritivas de direitos, ampliando a pena que pode ser substituída, que era de até um ano, fixando em até quatro anos.

 

Bibliografia

AGUDELO B., Nódier. “Estudio preliminar” in: Cesare Beccaria. De los delitos y de las penas, Bogotá: Editorial Temis, 1990.

BINETTI, Saffo Testoni. “Iluminismo”, in: Norberto Bobbio, et. al., Dicionário de Política, Brasília: ed. UnB, 8ª edição, vol. 1, 1995.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. vol. 1. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

CALAMANDREI, Piero. Prefácio in: Beccaria. Dos Delitos e Das Penas, São Paulo: José Bushatsky, 1978.

DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão, 20a ed., trad.: Raquel Ramalhete, Petrópolis: Vozes, 1999.

LUISI, Luiz, “Sobre Beccaria”, in: Os princípios constitucionais penais, Porto Alegre: Antonio Sérgio Fabris Editor, 1991.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa, trad: Waltensir Dutra e Silvana Vieira, São Paulo: Martins Fontes, 1999.

RIVACOBA, Manuel de Rivacoba y. Prólogo in: Verri, Pietro, Observaciones sobre la tortura, Buenos Aires: Depalma, 1977.

SILVA, Kalina Vanderlei. Silva, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2006.

VALIENTE, Francisco Tomás y. La tortura en España, 2ª edição, Barcelona: Editorial Ariel, 1994.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal. Parte General, tomo II, Buenos Aires: Ediar, 1987.

 

 

 

 

[1] Dotti, René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 124.

[2] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. vol. 1. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 433.

[3]Idade Antiga, ou Antigüidade, é o “período da História do Ocidente bem delimitado, que se inicia com o aparecimento da escrita e a constituição das primeiras civilizações e termina com a queda do Império Romano, dando início à idade média.” (Silva, Kalina Vanderlei. Silva, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 19).

[4] Bitencourt, Tratado, vol. 1, p. 434.

[5] nucci, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 61.

[6] A Idade Média ou Idade Medieval foi um período histórico que iniciou-se com a queda do Império Romano do Ocidente (séc. V) no séc. XV (1453 d.C.).  (http://pt.wikipedia.org/wiki/Idade_M%C3%A9dia)

[7] Bitencourt, Tratado, vol. 1, pp. 436-437.

[8] nucci, Manual de Direito Penal, p. 62.

[9] “A Idade Moderna é um período específico da História do Ocidente. Destaca-se das demais por ter sido um período de transição por excelência. Tradicionalmente aceita-se o início estabelecido pelos historiadores franceses, 1453 quando ocorreu a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, e o término com a Revolução Francesa, em 1789.” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Idade_Moderna)

[10] Bitencourt, Tratado, vol. 1, p.  438.

[11] Bitencourt, Tratado, vol. 1, p. 439. nucci, Manual de Direito Penal, p. 63.

[12] Bitencourt, Tratado, vol. 1, p. 440.

[13] Binetti, Saffo Testoni. “Iluminismo”, in: Norberto Bobbio, et. al., Dicionário de Política, Brasília: ed. UnB, 8ª edição, vol. 1, 1995, pp. 605/606.

[14] Perry, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa, trad: Waltensir Dutra e Silvana Vieira, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 296.

[15] SILVA & SILVA. Dicionário de conceitos históricos, p. 210.

[16] Valiente, Francisco Tomás y. La tortura en España, 2ª edição, Barcelona: Editorial Ariel, 1994, p. 148.

[17] Luisi, Luiz, “Sobre Beccaria”, in: Os princípios constitucionais penais, Porto Alegre: Antonio Sérgio Fabris Editor, 1991, p. 117, Valiente, La tortura en España, p. 149. Agudelo B., Nódier. “Estudio preliminar” in: Cesare Beccaria. De los delitos y de las penas, Bogotá: Editorial Temis, 1990. p. XXXIII.

[18] A expressão é usada sem qualquer conotação pejorativa; panfleto pois foi propaganda contra o sistema penal vigente (Zaffaroni, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal. Parte General, tomo II, Buenos Aires: Ediar, 1987, p. e Calamandrei, Piero. Prefácio in: Beccaria. Dos Delitos e Das Penas, São Paulo: José Bushatsky, 1978, p. XXX)

[19] Foi reeditada sucessivamente na Itália e traduzida para muitas línguas. (Luisi, “Sobre Beccaria”, p. 116)

[20] Valiente, La tortura en España, pp. 152-153. Rivacoba, Manuel de Rivacoba y. Prólogo in: Verri, Pietro, Observaciones sobre la tortura, Buenos Aires: Depalma, 1977, p. XXVIII.

[21] Valiente, La tortura en España, p. 162. Agudelo,  “Estudio preliminar”, p. L. Em princípio, parece haver uma equivalência entre as expressões útil e necessário. Todavia, útil significa que a pena deve ter como finalidade, a prevenção. É inútil a pena de morte, porque não se atinge o fim almejado. Necessário dá a idéia de relatividade. A pena só será necessária, quando não houver outro meio de se atingir o fim proposto. Desse modo, uma pena poderá ser útil, se cumprir a prevenção, mas poderá ser desnecessária, se o mesmo fim puder ser alcançado com uma pena mais leve. Por isso, “la pena, al par que útil, debe ser necessaria.” (Zaffaroni, Tratado de Derecho Penal, p. 91)

[22] Confira-se relato de Agudelo,  “Estudio preliminar”, p.. XXVI.

[23] O uso da tortura, conforme aponta Foucault, não era desmedido: “cruel, certamente, mas não selvagem”. Ao contrário, havia uma série de regras que detalhavam o tormento, seja estipulando a duração, seja definindo os instrumentos utilizados. (Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão, 20a ed., trad.: Raquel Ramalhete, Petrópolis: Vozes, 1999, p. 36.) Enfim, não se tratava de um massacre praticado descriteriosamente pelo verdugo.

Basta que se confira, por exemplo, a Constitutio Criminalis Theresiana, na qual há a descrição minuciosa e cuidadosa das formas de aplicar a tortura, coibindo a imaginação e a vontade dos magistrados, que ficavam adstritos aos métodos estabelecidos na lei (Rivacoba, “Prólogo”, p. VIII.)

[24] Bitencourt, Tratado, vol. 1, p. 46.