Introdução

Se alguém consuma um crime, será condenado a cumprir uma pena concreta que fica entre o mínimo e o máximo cominado pela lei. Se o indivíduo tenta consumar o crime, mas não consegue alcançar seu objetivo, sua pena será, em regra, diminuída de um a dois terços. Se alguém só prepara o crime, mas não chega a executá-lo, não comete crime algum, portanto não receberá qualquer pena. O mesmo ocorre se ele só deseja ou cogita praticar um crime.

O que se vê no parágrafo anterior é que até chegar à consumação do crime, o agente percorre um caminho. O percurso parcial desse caminho pode trazer consequências penais, ou não. O que evidencia que a análise de tal caminho não é inútil, ao contrário, é essencial para identificar a ocorrência de crime, bem como para, configurado, se saber se a pena é a integral — do crime consumado —, ou a pena com diminuição — da tentativa.

No crime consumado, a conduta realizada pelo agente tem total correlação (tipicidade) com a descrição abstrata da lei (tipo); já na tentativa, a conduta tem correlação parcial, faltando um elemento essencial do tipo.

Para a compreensão desse tema, é essencial a análise do iter criminis, o que será feito a seguir.

Das fases de realização do crime (iter criminis)

O iter criminis é o caminho do crime, ou seja, o roteiro que é percorrido até culminar com a consumação do delito. Divide-se em duas fases, a interna — que é o aspecto psicológico do crime — e a externa — quando o agente exterioriza sua intenção.

Na fase interna, o agente ainda não realiza qualquer comportamento que demonstre a vontade de cometer o crime, ficando esta parte à consciência da pessoa. A fase interna subdivide-se em cogitação, representação e decisão. Nem sempre os autores adotam essa divisão. Para Bitencourt, a fase interna é chamada de cogitação, ou cogitatio, sem subdivisões; abrange, pois, a deliberação e a decisão.

Na cogitação o agente faz a elucubração, ou seja, imagina a prática do crime.

Já na representação (prefere o termo deliberaçãoNucci, 2008, p. 311), o agente, mentalmente, faz as ponderações sobre o crime, analisa sua viabilidade, as vantagens e desvantagens de sua prática.

Por fim, chega o indivíduo à fase da decisão, na qual o agente chega à conclusão de que irá cometer o crime.

A fase interna do iter criminis é impunível, pois o direito penal não pune condutas exclusivamente internas, que não representam sequer perigo ao bem jurídico tutelado (cogitationis poenam nemo patitur). (Nucci, 2008, p. 311) Ademais, a lei penal existe para dissuadir o agente da prática do crime, se houve a cogitação do crime, mas o agente não realizou uma conduta, pode-se dizer que a lei cumpriu sua função preventiva.

Já na fase externa, o agente exterioriza sua decisão de cometer o crime, ou seja, ele realiza um comportamento. Subdivide-se em preparação, execução e consumação. Na fase externa, Nucci acrescenta a manifestação, “que é o momento em que o agente proclama a quem queira e possa ouvir a sua resolução” (Nucci, 2008, p. 312)

Na preparação (ou atos preparatórios) o agente tem um comportamento tendente a viabilizar a futura execução do crime, como na hipótese em que o agente compra o formicida para envenenar seu desafeto. A preparação não é punível.

Há casos em que o ato preparatório pode ser tipificado como crime autônomo. É o caso do crime de petrechos para falsificação de moeda (art. 291, CP), que nada mais é que a preparação para o crime de moeda falsa (art. 289, CP). (Bitencourt, Tratado, vol. 1, p. 396)

A execução é a prática de atos unívocos e idôneos (Nucci, 2008, p. 312) visando a consumação do crime; ou seja, são os atos dirigidos diretamente ao cometimento do crime.

Para Zaffaroni e Pierangeli, a execução divide-se em “começo da execução” e “culminação da ação típica”.( zaffaroni, Eugenio Raúl. pierangeli, José Henrique. Da tentativa. 5a ed. ão Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1998, p.) Se um agente decide matar uma pessoa injetando-lhe um dose letal, no momento em que há a introdução da agulha e a compressão do êmbolo, trata-se de começo da execução; quando é terminada a injeção e o agente retira a agulha, houve a culminação da ação típica. Note que a consumação se dará com a morte, que poderá demorar alguns minutos, mas o agente já fez tudo o que pretendia fazer, não lhe restando mais nada.

Por fim, a consumação quando todos os elementos do tipo estão presentes.

Pode haver, também, o exaurimento, que é um resultado que não é essencial à consumação do crime. É o caso do pagamento do resgate, no crime de extorsão mediante sequestro (art. 159, CP). (Nucci, 2008, p. 313)

Do crime consumado

Art. 14 – Diz-se o crime:

Crime consumado

I – consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal;

A consumação pode ser definida com a realização integral do tipo, quando não falta qualquer elemento essencial do tipo (Bitencourt, Tratado, vol. 1, p. 394) Em outras palavras, há total conformidade do fato concreto com a descrição abstrata do tipo (Damasio)

Confira-se o momento consumativo em cada uma das espécies de crime:

Crimes materiais: com a produção do resultado

Crimes culposos: com a produção do resultado

Crimes formais: realização da conduta

Crimes de mera conduta: realização da conduta

Crimes habituais: reiteração dos atos, que configura a habitualidade

Crimes permanentes: do instante em que se iniciou até o momento em que cessou a permanência — a consumação se prolonga no tempo

Crimes omissivos próprios: com a simples omissão

Crimes omissivos impróprios (omissivos por omissão): a produção do resultado que o agente não evitou com sua omissão

Do crime tentado

Art. 14 – Diz-se o crime:

Tentativa

II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Pena de tentativa

Parágrafo único – Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.

A tentativa é a realização incompleta do tipo penal (Bitencourt, Tratado, vol. 1, p. 395.), em razão de qualquer motivo que não seja a vontade do próprio agente. Na tentativa, o agente transpôs a barreira que separa a preparação da execução, mas não conseguiu chegar à consumação do crime. Para que se configure a tentativa, não basta o início da execução e a não consumação do crime, é essencial que esta decorra de razões alheias à vontade do agente, ou seja, que não seja fruto de sua própria vontade (confira-se distinção no item 5)

Com o intuito de proteger o bem jurídico, a lei penal se antecipa e pune a conduta intencionalmente voltada para a consumação, que causa um perigo de dano ao bem jurídico. Na tentativa é constatado “o perigo de realização do delito consumado e a intenção de o consumar por meio de uma conduta idônea à realização concreta da consumação.” (reale júnior, Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002, vol. I, pp. 281.)

A tipicidade da tentativa decorre da combinação do art. 14, II e do tipo penal correspondente. O crime tentado é a ação que tem parcial correlação com o tipo objetivo e total identidade subjetiva. Do ponto de vista subjetivo, o crime consumado é igual ao tentado. Objetivamente, no tentado há diferença entre o que se pretendia e o que se fez.

Tentativa acabada (ou perfeita, ou crime falho): Como o próprio nome diz, ocorre quando o agente terminou os atos executórios — chegou à culminação da ação típica —, mas mesmo assim não houve a consumação.

Tentativa inacabada (ou imperfeita): O agente inicia os atos executórios, mas não consegue concluir a execução (para Zaffaroni e Pierangeli, o agente não consegue chegar à culminação da ação típica. — zaffaroni, Eugenio Raúl. pierangeli, José Henrique. Da tentativa. 5a ed. ão Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1998, p. ), tampouco chega à consumação.

Quanto ao critério para se estabelecer a quantidade de diminuição da pena, já que a lei estabelece uma fração variável (1/3 a 2/3), será a proximidade da consumação. Quanto mais próximo da consumação, menor será a diminuição, mas, não pode o juiz deixar de proceder à diminuição.

“Tratando-se de tentativa, o critério utilizado para cálculo da fração a ser considerada na redução da pena deve levar em conta o iter criminis percorrido pelo agente, devendo ser mais alta a reprimenda quanto mais aquele se aproxime do momento consumativo” (TAPR – Ap. – j. 17.08.1999 – Rel. Leonardo Lustosa – RT 774/687).

Teorias fundamentadoras da tentativa: Por fim, é necessário se compreender qual a teoria que fundamenta a pena da tentativa. Há duas teorias, a objetiva e a subjetiva.

Segundo a teoria subjetiva, o fundamento da pena da tentativa está no desvalor da ação; a simples intenção do agente fundamenta a reprovabilidade penal. Ressalte-se que, para essa teoria, não deve haver diferença entre o crime consumado e o tentado, pois em ambos o aspecto subjetivo é o mesmo.

Já de acordo com a teoria objetiva, a pena da tentativa fundamenta-se no perigo ao bem jurídico tutelado. Leva-se em conta não só o desvalor da ação, como também o desvalor do resultado. Por essa teoria, o crime impossível não pode ser punido e a tentativa é punida com pena menor que o crime consumado. É a teoria adotada pelo Código Penal Brasileiro.

Desistência voluntária e arrependimento eficaz

Desistência voluntária e arrependimento eficaz

Art. 15 – O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.

Como se viu, na tentativa a não-consumação do crime decorre de circunstâncias alheias à vontade do agente. Já na desistência voluntária e no arrependimento eficaz, a execução é iniciada, mas o crime não se consuma exatamente em razão da própria vontade do agente. Não há, portanto, tentativa, mas uma decisão voluntária de não consumar o crime, que é tomada após o início da execução.

Para que se caracterize a desistência ou o arrependimento, é necessária a voluntariedade, que se configura quando há uma conduta livre, sem coação. Segundo a fórmula de Frank, é voluntária a desistência (ou o arrependimento) quando o agente diz “posso, mas não quero”. Não é voluntária a desistência feita em razão de coação, por ameaça. Também não é voluntária a desistência decorrente da ação especial do sistema penal (atuação da polícia, alarme, sirene, ou quaisquer outros sistemas de segurança).

Diferença entre a desistência voluntária do arrependimento eficaz: Na desistência, o agente está executando o crime e abstém-se de prosseguir na execução. Por exemplo, o agente está esganando a vítima e desiste de prosseguir na execução; nesse caso, basta que ele abstenha-se de prosseguir na execução do delito; basta, em outras palavras, que ele, literalmente, abra as mãos que apertam o pescoço da vítima. Já no arrependimento eficaz, o agente já terminou os atos executórios, e precisa agir positivamente, — ou seja, mediante uma ação (não basta a omissão) — para impedir a consumação do crime. Assim, se o agente entregou o veneno que foi bebido pela vítima, não basta que o autor se omita, sendo imprescindível que ele dê o antídoto (ação).

No capítulo CXXXVII, de Dom Casmurro, de Machado de Assis, o personagem Bentinho narra o episódio em que tinha uma xícara de café com veneno sobre a escrivaninha, que estava ali, inicialmente, para que cometesse suicídio:

“Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não estivesse aqui escrevendo este livro, porque o meu primeiro ímpeto foi correr ao café e bebê-lo. Cheguei a pegar na xícara, mas o pequeno beijava-me a mão, como de costume, e a vista dele, como o gesto, deu-me outro impulso que me custa dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamem-me embora assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara café.

— Já, papai; vou à missa com a mamãe.

— Toma outra xícara, meia xícara só.

— E papai?

— Eu mando vir mais; anda bebe!

Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei, mas disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava frio … Mas não sei que senti que me fez recuar. Pus a xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabeça do menino.

— Papai! papai! exclamava Ezequiel.

— Não, não, eu não sou teu pai!”

No caso acima, está configura a desistência voluntária. Observe que Bentinho estava executando o crime, quando decidiu, voluntariamente, interromper a execução.

No exemplo do veneno, o que ocorre se o antídoto dado pelo agente arrependido não produz efeito e a vítima morre em porque o veneno já produziu seu efeito? Não está configurado o arrependimento eficaz, devendo o agente responder por crime consumado. Segundo o texto da lei, ocorre o arrependimento eficaz, quando o agente “impede que o resultado se produza”, o que não foi o caso. Ademais o nome é arrependimento eficaz e no caso concreto o arrependimento foi ineficaz.

Meramente representado: Quando o obstáculo que impede a consumação é meramente representado (putativo), não haverá desistência, pois o agente supôs que não pudesse prosseguir na execução.  Assim, não é voluntária a desistência do furtador que abandona a casa na qual estava furtando, por ter ouvido um barulho que pensava ser de alguém chegando, mas que era na verdade um ruído causado pelo vento. (Hungria, 1958, p. 96)

Medo: Quanto ao medo, se for um medo genérico de ser descoberto ou medo abstrato da pena, haverá a desistência voluntária ou o arrependimento eficaz. Se for, porém, o medo diante da presença de alguém ou de algum barulho que o agente pensa ser a polícia, haverá tentativa.

Espontaneidade: Não se exige que a desistência ou o arrependimento seja espontâneo, ou seja, de iniciativa do agente. É voluntária a desistência decorrente de apelo da vítima ou de sugestão do co-autor, embora não seja espontânea. Basta que o agente diga para si: “posso, mas não quero”.

Motivo: A lei não exige que a motivação da desistência ou do arrependimento seja ético, derivado de motivação nobre ou moral. Ainda que aético o motivo, havendo voluntariedade, está configurada a desistência ou o arrependimento.

“Não se faz mister que o agente proceda virtutis amore ou formidine poenoe, por motivos nobres ou de índole ética (piedade, remorso, despertada repugnância pelo crime) ou por motivos subalternos, egoísticos (covardia, medo, receio de ser eventualmente descoberto, decepção com o escasso proveito que pode auferir): é suficiente que não tenha sido obstado por causas exteriores, independentes de sua vontade.” (HUNGRIA, Comentários ao código penal, p. 95.)

Arrependimento posterior

Arrependimento posterior

Art. 16 – Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.

O arrependimento posterior ocorre após a consumação do delito. Consumado o crime, não é mais possível o arrependimento eficaz, quando a conduta é impunível. Contudo, o legislador criou o chamado arrependimento posterior, no qual a pena é diminuída de um a dois terços, desde que ele repare o dano ou devolva a coisa.

São requisitos: a) que o crime seja sem violência ou grave ameaça; b) reparação do dano que ou a devolução da coisa; c) dano patrimonial do crime. (Nucci, 2008, p.  330)

Crime impossível

Crime impossível

Art. 17 – Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime. $

A chamada tentativa inidônea (ou crime impossível) ocorre na hipótese em que o agente realiza um comportamento visando a execução do crime, mas não existe possibilidade atingir a consumação. Como em relação à tentativa foi adota a teoria objetiva, em tais casos, por não haver o perigo ao bem jurídico tutelado, não há o desvalor do resultado, razão pela qual a conduta não é punível.

Ocorre em duas hipóteses: quando o sujeito usa um meio absolutamente ineficaz ou quando o objeto contra o qual recai a ação é absolutamente impróprio. Na primeira hipótese, temos o caso do sujeito que “atira” com uma arma de brinquedo, imaginando que fosse verdadeira; no segundo a ação de quem atira contra um cadáver, pensando que está vivo. (Exemplos de Nucci, 2008, p. 334)

Ainda que exista um desvalor da ação, não há desvalor do resultado, razão pela qual não se pune a conduta.

“Adota-se, no Brasil, a teoria objetiva, vale dizer, leva-se em conta, para punir a tentativa, o risco objetivo que o bem jurídico corre. No caso da tentativa inidônea (crime impossível), o bem jurídico não sofreu risco algum, seja porque o meio é totalmente ineficaz, seja porque o objeto é inteiramente impróprio. Daí por que não há punição.” (Nucci, 2008, p. 334)

Uma hipótese de crime impossível é prática do flagrante provocado, no qual alguém estimula a prática de um crime, preparando-se para impedir a consumação e para prender o autor da conduta.

O “proprietário de uma casa de modas, desconfiado da probidade de uma de suas empregadas, encarregou-a de selecionar um sortimento de aigrettes, deixando-a a sós, entregue a tal serviço, num dos cômodos da loja, ao mesmo tempo que punha a espreitá-la um agente de polícia, previamente chamado, o qual pôde surpreendê-la no ato de esconder no seio algumas das penas de garça.” (HUNGRIA, Comentários ao código penal, p. 106) Nesse exemplo de Hungria, está configurado o flagrante provocado, espécie de crime impossível (também chamado de crime de ensaio, ou de crime impossível por obra do agente provocador). Não será punida a conduta da vendedora.

Bibliografia

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. vol. I. tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1958.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

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