Direito de punir

Ao realizar um comportamento proibido, o cidadão fica sujeito à coação estatal. Em geral, a realização de uma conduta proibida configurará apenas um ilícito jurídico, solucionável mediante as regras do Direito Civil, ou seja, mediante indenização pelos danos causados. Todavia, há condutas ilícitas que atingem tão gravemente a sociedade, que não podem ser resolvidos através do Direito Civil, reclamando uma intervenção mais grave do Estado. (Mirabete, pp. 23-24)

Em razão da gravidade de tais ilícitos, o Estado passa a ter o jus puniendi, que é o direito de punir os autores. Em outras palavras, o Estado poderá aplicar penas, inclusive as privativas de liberdade, ao autor de infrações graves.

Como, porém, conseguir essa intervenção de modo legítimo? A história mostra que o poder estatal precisa ser sempre limitado por regras legais, para evitar o arbítrio e o abuso. Não teria sentido que o Estado, pretendendo evitar condutas socialmente danosas, permitisse a montagem de um aparelho repressivo que se pautasse pelo arbítrio e pelas sanções injustas.

Para regular o jus puniendi, a Constituição — como em todo país civilizado — consagra o princípio da legalidade penal: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (art. 5º, XXXIX). Em primeiro lugar, portanto, está o princípio da legalidade penal, segundo o qual para que seja crime, a conduta tem que se enquadrar perfeitamente (tipicidade) na definição de conduta proibida feita pela lei penal (tipo).

Realizada tal conduta típica, surge para o Estado o jus puniendi, que mais que poder é um “dever de punir”. (Mirabete, p. 25) Todavia, o Estado não poderá aplicar a pena incontinenti. O autor de um crime só será punido após o exercício do devido processo legal, pois a Constituição estabelece que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV).

Pretensão punitiva e lide penal

Quando supostamente um cidadão cometeu um crime, surge um evidente conflito de interesses: de um lado o direito do Estado de punir o infrator da lei penal (jus puniendi in concreto), de outro o direito de liberdade do acusado (jus libertatis).

Nesse conflito, surge a pretensão, que é a exigência de subordinação de um interesse alheio ao próprio. A subordinação do interesse individual ao interesse do Estado é a chamada pretensão punitiva.

Quando existe a oposição de uma parte à pretensão da outra, surge a lide. É clássica a definição de Carnelutti, para o qual “lide é um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida.” Mirabete define lide como “o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos interessados e pela resistência de outro” (Mirabete, p.25). Para Tourinho na “lide há um interesse subordinante e um subordinado. Um que deve prevalecer, por ser protegido pelo Direito, e outro que deve ser subordinado, por lhe faltar a tutela jurídica.” (Tourinho Filho, pp. 2-3)

Se antes qualquer forma de litígio era resolvida com o emprego da força, com a evolução histórica constatou-se que havia sempre o predomínio da razão do mais forte, o que não era desejável. Foi necessário que surgisse uma forma pacífica para a solução dos conflitos, a cargo de terceiro, não envolvido na demanda. De nada adiantaria, contudo, a solução do terceiro, se esta decisão não prevalecesse, por ser descumprida. Era imprescindível que este terceiro tivesse força suficiente para impor a decisão tomada.

“Como se percebe, somente o Estado é que podia ser esse terceiro. Então o Estado avocou a tarefa de administrar a justiça restaurando a ordem jurídica quando violada. Essa intervenção, entretanto, ocorreu paulatina e gradativamente.” (Tourinho Filho, 2009, pp. 3-4)

 

Por mais que esteja certo quanto a sua pretensão, ninguém poderá fazer justiça com as próprias mãos; caso contrário, incorrerá no crime de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, CP)(Tourinho Filho, p. 4)

Conceito de Direito Processual Penal

Por mais evidente que seja a autoria de um crime — com fortes provas testemunhais e com confissão do suposto autor —, o Estado jamais poderá punir sem o Processo Penal. Para que exista legitimidade nessa punição, há que se obedecer a princípios constitucionais, sem os quais a punição é ilegal e abusiva.

O primeiro princípio é o do devido processo legal (due process of law), segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (CF, art. 5º, LIV). A razão histórica do surgimento de tal princípio foi a limitação do poder estatal, visando a proteção da liberdade humana (Mirabete, p. 27). Tal princípio possui diversos desdobramentos, ou corolários.

Como já dito, o Estado só pode exercer o jus puniendi, mediante o processo penal e perante órgãos jurisdicionais competentes (Mirabete, p. 28).

Segundo Mirabete, diante da lide, surge o poder jurisdicional que se mantém eqüidistante de ambas as partes. Para a solução da lide, a lei prevê uma série de atos em que cada uma das partes tem a oportunidade de demonstrar que deve prevalecer o seu interesse, em detrimento do outro. Assim, a acusação tenta demonstrar que o réu foi o autor do crime, razão pela qual deve ser-lhe aplicada a pena; a defesa tenta demonstrar que não é caso de aplicação da pena, mas de absolvição. Essa dialética não é feita aleatoriamente, mas através de atos legalmente previstos. “Ao conjunto desses atos, que visam a aplicação da lei ao caso concreto, se dá o nome de processo.” (Mirabete, p. 28) Após a realização dos atos previstos em lei, o Estado exerce o poder jurisdicional decidindo, através da sentença, exara sua decisão com força obrigatória. Para Tourinho, “processo é uma sucessão de atos com os quais se procura dirimir o conflito de interesses.” (Tourinho Filho, 2009, p. 4)