Introdução

Não é por acaso que o Código Penal traz o princípio da legalidade em seu art. 1º. Trata-se de um alicerce do direito penal, a regra de que não há crime sem lei anterior. Do mesmo modo, a Constituição da República traz no seu rol de direitos fundamentais do art. 5º, o mesmo princípio da legalidade em redação quase idêntica (inciso XXXIX).

O princípio da legalidade impõe que uma ação ou omissão só poderá ser considerada crime, se houver uma lei definindo aquela conduta como crime antes de ela ser praticada.

Constituição da República
Art. 5º, XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

Código Penal
Art. 1º – Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Trata-se de princípio que tem a função de garantia da liberdade humana, impondo um importante limite ao uso do poder punitivo. Nenhum cidadão teria sua liberdade assegurada, se fosse possível condenar alguém por crime que não estivesse previsto em lei. Em razão da imensa variedade de convicções pessoais, nenhuma pessoa estaria livre de, ao praticar conduta que considerasse legítima, ser considerada autora de crime, por afrontar os valores pessoais do juiz de ocasião. O princípio da legalidade assegura a liberdade do cidadão, que tem a garantia de que jamais será condenado se não cometer uma das condutas definidas como crime.

Importante compreender que a legalidade decorre da separação dos poderes, que é importante preceito que estabelece a divisão do poder estatal, objetivando coibir abusos contra a liberdade, decorrentes da concentração de poder. (Dimitri Dimoulis, p. 370). A escolha de quais condutas devem ser consideradas criminosas cabe aos representantes do povo, ou seja, ao deputados e senadores, que são representantes da vontade geral. Ao juiz cabe o papel de interpretar as leis e jamais o de impor sua opinião sobre qual conduta é socialmente danosa. Juiz não tem mandato, não é eleito, de modo que não representa a vontade geral.

Legalidade

O princípio da legalidade pode ser dividido em quatro subprincípios, comumente definidos por uma expressão em latim: Legalidade escrita (nullum crimen, nulla poena sine lege scripta), Legalidade estrita (nullum crimen,  nulla poena sine lege stricta), Anterioridade (nullum crimen, nulla poena sine lege praevia) e Taxatividade (nullum crimen, nulla poena sine lege certa). Vejamos cada um deles.

Legalidade Escrita (nullum crimen, nulla poena sine lege scripta)

Como já dito, a legalidade decorre da separação dos poderes, de modo que apenas os parlamentares (deputados e senadores) representam a vontade geral e podem escolher quais as condutas devem ser consideradas criminosas. Por isso, quando o princípio diz “sem lei que o defina”, usa a palavra no sentido formal, lei aprovada pelo parlamento e devidamente promulgada. Lei federal, é bom que se diga.

Com isso, há a exclusão de outras normas, que não poderão definir crimes: medida provisória, portarias de órgãos públicos (Ministério, Secretarias Estaduais, órgão fiscalizatórios etc), resolução do Tribunal Superior Eleitoral e leis estaduais ou municipais.

Do mesmo modo, os costumes não poderão ser usados como fonte do direito penal. Por mais que uma conduta seja contrária aos costumes, se não houver definição feita por lei, a conduta não é criminosa.

Convém também deixar claro que uma conduta jamais poderia ser definida como crime pela jurisprudência. As decisões dos Tribunais podem e devem ser usadas para auxiliar a interpretação da lei penal, jamais para definir com crime uma conduta não prevista em lei.

Legalidade Estrita (nullum crimen, nulla poena sine lege stricta)

Este subprincípio é dirigido ao intérprete, impondo que ele se atente que não há crime fora do que estritamente a lei define. Isso não significa que esteja vedada a interpretação da lei penal. Longe disso. O tipo penal mais simples é o do homicídio: “Matar alguém”. Quando se diz que matar a causar a morte e alguém é o ser humano, obviamente há interpretação. Interpretar não é criar, não é impor sua vontade, mas apenas estabelecer o sentido e os limites daquele tipo.

Zafaroni diz que o conteúdo semântico da norma é o limite ao poder punitivo. Aqui está a clara a ideia de que a lei penal serve como limite do poder punitivo. Se todo homem que tem poder abusa do poder (Montesquieu), é preciso colocar limites a uso do poder. A lei penal é um limite ao poder punitivo. O juiz tem esse limite e só poderá condenar alguém que tenha praticado estritamente o que está definido como crime.

É este subprincípio que veja o uso da analogia para incriminar uma pessoa. A analogia para incriminar é a condenação de alguém que não pratica uma conduta estritamente descrita na lei, mas que comete uma conduta bem semelhante. Por mais parecida que seja, se o a conduta praticada não é exatamente a descrita em lei, o autor da conduta jamais poderá ser condenado.

Anterioridade (nullum crimen, nulla poena sine lege praevia)

A legalidade seria absolutamente inútil, sem a anterioridade. Quando a Constituição e o Código dizem “sem lei anterior”, estabelece a exigência de que a lei usada para condenar uma pessoa não pode ter entrado em vigor após a conduta ter sido praticada. Significa dizer que a lei que define um crime não tem efeitos retroativos, ou seja, não atingem fatos praticados anteriormente a sua vigência.

Imaginemos um exemplo. O Código Penal estabelece que não é crime o aborto praticado em caso de gravidez resultante de estupro (art. 128, II, CP). As bancadas religiosas, segundo notícias, pretendem apresentar projeto que considere crime de aborto todas as formas de interrupção de gravidez, ainda que decorrente de estupro. Na improvável hipótese de que consigam aprovação dessa lei e que tal lei não seja tida como inconstitucional, o aborto nesse caso seria considerado crime. Mas isso não afetaria as mulheres vítimas de estupro que tivessem interrompido a gravidez antes da vigência da lei.

Além da irretroatividade da lei penal que define crime, a lei penal que agrava o crime é irretroativa. Já a lei que abranda de algum modo ou revoga o crime tem retroatividade. Essa questão tratada em outra página, Lei penal no tempo [aqui].

Taxatividade (nullum crimen, nulla poena sine lege certa)

Se o princípio diz “lei anterior que o defina”, é preciso que a lei defina a conduta, o que significa dizer que a lei estabeleça de forma precisa os limites da conduta criminosa. A taxatividade não permite que os crimes sejam definidos por leis genéricas, que não se consegue estabelecer os limites, deixando o cidadão à mercê do arbítrio judicial.

Em regimes autoritários é comum a violação a tal princípio. No nazismo, a lei considerava crime tudo o que contrariasse “o são sentimento do povo”. No stalinismo, era crime a “ação socialmente danosa”. E no Brasil, a ditadura militar definiu como crime, “Incitar à subversão da ordem política ou social.” (Lei de Segurança Nacional). É proposital a definição de crimes de modo tão genérico, para que o poder repressivo pudesse atuar sem limitações, a serviço do poder político.

Mesmo em regimes democráticos, como o brasileiro, há risco de abuso do poder de legislar, mediante leis penais não taxtavias, como diversos crimes previstos na lei ambiental. Confira-se nosso artigo: O Princípio Constitucional da Determinação Taxativa e os Delitos Ambientais, Boletim do IBCCrim¸ no 104, julho/2001, pp. 02/03 (aqui).

Exemplo: o crime de perseguição

Foi acrescido ao Código Penal, pela lei 14.132, de 31/03/2021, o art. 147-A, definindo o novo crime.

Perseguição

Art. 147-A.  Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.       (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)

Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.       (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)

Pelo princípio da anterioridade, por mais grave que seja a conduta, jamais uma pessoa poderia ser condenada por perseguição, por fato praticado antes de 31/03/2021, data em que entrou em vigor a nova lei. Por se tratar de uma lei incriminadora, ela não tem retroatividade.

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