No dia 29 de agosto de 2017, um homem masturbou-se dentro de um ônibus, que trafegava pela av. Paulista, e ejaculou em uma jovem que estava sentada no banco da frente. Preso em flagrante por crime de estupro e levado a juízo, em audiência de custódia, o juiz relaxou o flagrante, sustentando não ter ocorrido crime de estupro e sim a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor (art. 61, da Lei de Contravenções Penais), para qual é prevista apenas pena de multa.

Tal decisão gerou um debate acalorado, predominando a crítica contra o juiz.

Um trecho da decisão judicial foi reproduzida, à exaustão, nas redes sociais, com críticas ou ofensas ao juiz.

O trecho que repercutiu foi o seguinte: Entendo que não houve constrangimento tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus, quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado.¹

O que mais gerou ofensas foi o fato de f

dizer que não existiu constrangimento.

A decisão penal foi correta.

Pois bem, qualquer pessoa, minimamente em sã consciência, para usar um clichê antigo, sente repulsa pela conduta de quem ejacula, sem consentimento, em uma pessoa. Trata-se de algo repugnante, asqueroso, sórdido, repulsivo…

Contudo, a repulsa pelo ato, não é suficiente para a configuração do crime de estupro. A rigor, à luz do texto legal, crime de estupro não se caracterizou.

Nunca é demais relembrar que a lei penal cumpre, no Estado Democrático de Direito, uma importante função limitadora da atuação judicial, ou seja, do Estado. No Direito Penal vigora a legalidade estrita: ainda que socialmente danosa, se o fato não está definido na lei como crime o autor não poderá ser punido. Insisto, por mais repulsiva que seja a conduta, se ela não se encaixa perfeitamente no texto da lei penal (tipo), não é crime.

Há, pois, clara distinção entre moral e direito, entre uma conduta imoral e uma conduta criminosa.

Dito isso, é preciso analisar o tipo (para quem não é do direito, tipo é a definição que faz a lei de uma conduta criminosa) do estupro:

“Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:”

O ponto controverso está, sobretudo, no sentido do verbo constranger, usado pelo Código Penal, e do substantivo constrangimento usado na decisão judicial.

São raras as palavras que não são polissêmicas, ou seja, que não apresentam vários sentidos, e constranger não é diferente. Basta uma consulta no dicionário para ver que há várias acepções para o verbo constranger. Dentre os vários sentidos, o mais usado coloquialmente é o de causar embaraço, vergonha, vexame. Contudo, há também o sentido de obrigar alguém a fazer o que não quer (Dicionário Houaiss).

O Código Penal usa o verbo constranger, em diversos artigos², no sentido de obrigar a fazer o que não quer. Na definição dos crimes, constranger não é causar humilhação, vexame, embaraço, constranger é obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer algo. Note-se que constranger no sentido de embaraçar é um verbo transitivo direto, que não reclama objeto indireto. Assim, se diz constranger alguém. Já constranger no sentido de obrigar é verbo bitransitivo, que exige o objeto direto e indireto. É fácil notar que o artigo 213 contém o objeto direto (alguém) e o indireto (a conjunção carnal ou ato libidinoso).

O crime de estupro, portanto, se configura se o autor constrange (obriga) a vítima (objeto direto) a manter conjunção carnal ou ato libidinoso (objeto indireto). A conjunção carnal é a introdução do pênis na vagina e ato libidinoso, bem mais amplo, é qualquer outro ato sexual, como o coito anal, sexo oral ou toques na genitália ou seios da vítima.

Em relação ao ato libidinoso, a variação existente é a de praticar ato libidinoso ou permitir que com ele se pratique o ato libidinoso. A vítima é obrigada a praticar ato libidinoso se for obrigada a ter um comportamento sexual ativo, como na hipótese em que é obrigada a fazer sexo oral ou a masturbar o autor. É obrigada a permitir que com ela se pratique o ato libidinoso, na hipótese em que é obrigada a ter um comportamento passivo para que o autor nela pratique o ato sexual, quando é obrigada a permitir que o autor a submeta ao coito anal. Nessa última hipótese é imprescindível que o autor toque o corpo da vítima, que é obrigada a permitir que nela se pratique o ato sexual.

Em qualquer uma das três hipóteses, para que se configure o estupro, é necessário que o meio utilizado seja a violência ou a grave ameaça. Em relação aos meios, também em razão da polissemia dos vocábulos, houve quem dissesse que ocorreu violência e ameaça.

No sentido coloquial a palavra violência se presta a vários usos, como na hipótese em que se diz a “violência da censura”, no sentido de tirania ou ato injusto. Contudo, o Código Penal usa a violência no sentido de uso da força física, que retira da vítima a possibilidade de resistir contra o ato perpetrado. Já ameaça tem o sentido de promessa de um mal injusto e grave, ou seja, é preciso que o autor diga — por palavra, escrito, gesto ou meio simbólico — que irá causar na vítima algum mal injusto e grave.

No caso da ejaculação do ônibus, nem se pode dizer que a vítima foi constrangida (obrigada) a permitir que nela fosse praticada o ato libidinoso, já que inexistiu contato sexual entre o autor e a vítima (tratando-se de automasturbação, não há como dizer que o ato libidinoso foi praticado na vítima), nem que foi praticada violência ou ameaça, no sentido estrito que emprega o Código Penal.

Convém lembrar que a interpretação da lei não é um ato de vontade, em que o intérprete impõe seus valores pessoais, sua valoração moral. Interpretação é um ato cognitivo, com o qual se encontra o sentido da lei penal, independentemente das valorações morais do intérprete.

Nesse debate sobre o ejaculador, o que mais se viu foi a vontade de condenar o autor da ejaculação, e a construção de argumentos, a partir dessa vontade, para sustentar que houve estupro. É para condenar porque tem que condenar. Primeiro há a decisão de condenar, depois se tenta usar argumentos, até mesmo se valendo de sentido figurado das palavras.

A decisão do juiz, pois, foi corretíssima. Apesar de ter praticado uma conduta repugnante, não houve o ato de constranger, no sentido de obrigar a vítima a ato sexual, mediante violência ou grave ameaça. Por isso, não houve crime de estupro.

 

Notas

¹ Veja a íntegra da decisão do juiz aqui. http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2017/09/20170901185659616.pdf

 

² O verbo constranger aparece nos seguintes artigos do Código Penal: 146, 158, 197, 198, 199, 213 e 216-A. O uso é sempre no sentido de obrigar, exceto no art. 216-A, que define o assédio sexual, que foi introduzido no Código pela lei 10.224/2001. No crime de assédio sexual não há o objeto indireto, de modo que bastará que exista o constrangimento, no sentido de causar embaraço, constrangimento.

 

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