Ilustração de Alexandre Martins

Machado de Assis, em “Ideias de canário”, traz a história de um canário que surpreende um homem, que o encontra na gaiola, tanto por falar, como por sua singular ideia do mundo.

Quando descobre que a ave fala, o homem pergunta se o dono da loja de antiguidades, onde estava sua gaiola, era seu dono.

Ofendido, o canário diz que aquele homem é seu criado: “dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco”. Segundo ele, “mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara” e “o canário é o senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca.” ¹

Impossibilitado de ver o mundo, o canário acreditava que o mundo era aquilo que ele via. E, o mais surpreendente, supunha ser o dono do mundo e supunha ser o seu criado, o homem que era seu dono. Fora daquilo que ele via, não havia outra coisa senão “ilusão e mentira”.

Uma das interpretações possíveis, a mim me parece, é sobre a limitação do conhecimento, que leva a pessoa a achar que o mundo é apenas aquilo que ele conhece. Preso a suas convicções pessoais, a seus hábitos, preceitos, supõe que nada mais existe de válido, fora daquele seu parco mundo de valores.

Em “Anedota Búlgara”, o czar naturalista de Drummond, caçador de homens, fica espantado ao saber que também se caça “andorinhas e borboletas”. Caçador de homens, o czar é incapaz de notar a gravidade de seu costume, mas acha “uma barbaridade” o que não pertence a seu mundo.²

Parece vir daí a pretensão de algumas pessoas de considerar barbárie tudo o que não corresponda aos seus princípios, como se os valores do mundo se limitassem aos seus. Daí a incapacidade de admitir que há uma enorme variedade de princípios, que o leva a julgar mal toda pessoa que tenha valores diferentes do seu.

É a imagem caricata do paroquiano que não conhece muita coisa além dos sermões do padre de sua paróquia. Tudo o que não se encaixa nos princípios que ele professa, é tido como uma abominação. Para ele, não existem outros preceitos, existem as pessoas que têm valores, como ele, e todos os demais são desprovidos de valores.

Pode ser também a imagem não menos caricata do elitista que aprecia música erudita e julga que tudo o que não pertença a seu mundo musical não é arte, é vulgaridade.

Em suma, é o sujeito incapaz de perceber que essa infinidade de valores no mundo são apenas diferentes dos seus, não inferiores.

Ao que parece essa incapacidade de ver o mundo além da gaiola pendente de sua loja de belchior, torna o sujeito pretensioso, pois tudo que não está no seu mundo, não merece respeito. Como o canário, incapaz de ver a vastidão que existe fora de sua vida, ele se acha o dono do mundo, o dono do saber. Eis o paradoxo, quanto menos sabe, mais pretensiosa se torna a pessoa, pois tende a achar que apenas existe um modo de viver no mundo, porque não consegue perceber nada além de próprio mundo.

Quando uma pessoa repele uma obra de arte, afirmando que aquilo “não é arte”, essa pretensão se vê aflorada. Essa confusão, entre sua avaliação estética — absolutamente livre e estritamente subjetiva — e a condição artística da obra, revela a ideia de não existe nada de arte fora do seu gosto. Não há arte fora de seu mundo artístico. É possível detestar uma obra, achá-la feia, repugnante até. O que não tem sentido é negar a condição de arte, porque isso significa negar a existência de infinitas formas de manifestações artísticas.

Ninguém exerce melhor esse papel que os moralistas.

Se prevalecesse a visão dos moralistas, Madame Bovary — que gerou um processo contra Flaubert e lhe acarretou a execração dos puritanos — não teria se tornado uma das maiores obras da literatura universal.

Foram os moralistas que interditaram, em 1946, Álbum de Família, de Nélson Rodrigues, hoje uma quase unanimidade como dramaturgo.

Aliás, é interessante ver como os moralistas são repetitivos. A peça de Nelson Rodrigues foi censurada porque “preconizava o incesto”, segundo os censores, e se tratava “da mais vulgar subliteratura” e “uma patacoada obscena”, segundo o intelectual católico Alceu Amoroso Lima, um crítico respeitado, mas conservador.³

O fulgurante surgimento dos Secos & Molhados provocou reação dos conservadores, “chocados com o visual andrógeno” de Ney Matogrosso.⁴

O problema do moralista não está em seus princípios, mas na pretensão de que seus valores devam prevalecer sobre os demais. E ao ver, na história, as obras que os moralistas já tentaram censurar, é muito melhor não estar ao lado deles quando, ruidosamente, gritam que uma obra é apologia da pedofilia ou a destruição dos valores da família. Ademais, não é raro que o moralista, que brada contra alguma barbaridade, é o mesmo que acha natural ter como hábito caçar pessoas.


Notas
¹ ASSIS, Machado. “Ideias de canário”. In: Páginas recolhidas — Obras completas de Machado de Assis, vol. 15. São Paulo: Editora Mérito, 1959, pp. 107-115.
² ANDRADE, Carlos Drummond de. “Anedota Búlgara”. In: Nova Reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 30. O poema pode ser ouvido na voz de Paulo Autran aqui.
³ CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 200.
⁴ MARTINS, Franklin. Quem foi que inventou o Brasil? — a música popular conta a história da República: vol. II – de 1964 a 1985. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 154.