A cena é extremamente cruel, e meu punho a transcreve a duras penas; mas se o calafrio que sinto servir para poupar nem que seja apenas uma vítima, se se deixar de infligir uma única tortura graças ao horror que passo a expor, será bem empregado o doloroso sentimento que me toma, e essa esperança é minha recompensa.
(Pietro Verri)*
Introdução
A tortura foi, entre os séculos XIII e XVIII, legalmente admitida por diversos reinos europeus, por ser considerada como um meio eficaz para o descobrimento da verdade. Com o advento do Iluminismo, especialmente com a obra de Beccaria que veio à lume em 1764, a tortura começou a ser abolida pelos diversos reinos. Em 1766, Catarina II da Rússia ordenou uma reforma penal, na qual foi abolida a tortura. Em 1776, a imperatriz Maria Teresa da Áustria determinou a proscrição da tortura. Luís XVI a suprimiu em 1780 (Tomás y Valiente, 1994, pp. 152-153). Na Espanha, a tortura foi abolida em 1808, com sua primeira Constituição (art. 133) (Sabadell, 2002, pp. 25).
Apesar da abolição da tortura, sua prática continuou. Epidêmica nos regimes ditatoriais, ou endêmica no cotidiano da repressão policial de diversos países, o fato é que esse nefando meio de obtenção de confissão ou de castigo, sempre foi praticado. No Brasil, a tortura por motivações políticas ocorreu sobretudo no Estado Novo (1937-1945) e no Regime Militar (1964-1985). A tortura como meio de apuração policial faz parte do cotidiano das delegacias brasileiras, onde a precariedade dos meios de apuração, a falta de punição e uma silenciosa complacência social estimulam a sua prática.
[Sobre a repressão política durante o regime militar veja: Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Organização de Maria Celina D’Araújo [et. al.]. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. SOUZA, Percival de. A autópsia do medo: vida e morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Arquidiocese de São Paulo. Brasil: nunca mais – um relato para a História. 10a ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 1985.]
Apesar desse histórico e de a Constituição de 1988 determinar que a prática de tortura não possibilitaria o benefício da fiança, anistia ou graça, apenas em 1997, o legislador brasileiro tipificou a prática dessa ignomínia. Contudo, ao fazê-lo, o legislador não respeitou a melhor técnica legislativa, nem se atentou à definição internacional de tortura.
Com efeito, a definição de tortura, segundo o direito internacional, compreende três elementos, o material, a qualificação do sujeito ativo e o teleológico. O elemento material é o referente ao sofrimento físico ou mental que é infligido à vítima. O segundo elemento exige que o sujeito ativo do delito seja funcionário público. O elemento teleológico exige uma finalidade específica, qual seja a busca de uma informação ou confissão, ou a imposição de castigo pessoal (Días Pita, 1997, p. 39. Muñoz Conde, 1996, p. 166).
A gravidade da tortura reside no fato de ela viola o bem jurídico função pública, pois é com seu abuso — já que o funcionário público age extrapolando os limites legais de sua atividade —, (Días Pita, 1997, p. 43. Muñoz Conde, 1996, p. 158) que se submete alguém à tortura. Exatamente porque o torturador atua abusando dos poderes funcionais, que Queralt Jimenez defende que a tortura atenta contra o próprio Estado de Direito. De certa forma, há uma pluraridade de bens jurídicos ofendidos, como as garantias fundamentais da pessoa humana e o exercício da função pública (Días Pita, 1997, p. 44). Além disso, obviamente, há uma ofensa a bens jurídicos individuais, como a liberdade e a integridade física ou psíquica.
O que torna a tortura grave é precisamente o fato de que é um crime pluriofensivo que, além de bens individuais, por ser praticado por agente estatal, viola as garantias fundamentais, o exercício da função pública, de modo a atentar contra o Estado Democrático de Direito. Por isso, dentre os maiores defeitos da lei brasileira, avulta-se a opção por definir a tortura como um crime comum (Silva Franco, 1997, p. 58).
O legislador brasileiro, contrariando tal preocupação internacional, de reconhecer na tortura uma prática em que os direitos fundamentais do homem são afetados — mais que apenas sua integridade física ou psíquica —, definiu o crime de tortura como um delito comum, sem exigir para a sua configuração a condição de funcionário público, ao contrário da legislação espanhola e portuguesa (v. apêndice) e da Convenção da ONU de 1984.
Por outro lado, nas duas primeiras modalidades típicas, exige-se como meio para a imposição do sofrimento físico ou psíquico o uso da violência ou da grave ameaça, olvidando que há uma série de outros meios que podem impor tais sofrimentos — principalmente o psíquico —, sem que possam ser classificados como violência ou grave ameaça.
O art. 174, 1, do Código Penal Espanhol, define a tortura como o ato de submeter alguém “a condiciones o procedimientos que por su naturaleza, duración u otras circunstancias, le supongan sufrimientos físicos o mentales, la supresión o disminución de sus facultades de conocimiento, discernimiento o decisión, o que de cualquier otro modo atenten contra su integridad moral”. A lei não exige que o meio seja a violência ou a grave ameaça.
Da mesma forma, o art. 243o, 3, do Código Penal Português define a tortura como “o acto que consista em infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave ou no emprego de produtos químicos, drogas ou outros meios, naturais ou artificiais, com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima”.
Apesar das deficiências da lei, tanto melhor que tenhamos uma lei que tipifique a tortura, dependendo, agora, da mudança de mentalidade dos operadores do direito, para que sua prática seja, efetivamente, coibida e que essa lei não seja mais um diploma legal ineficaz.
Tortura indagatória
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
Bem jurídico
Sujeitos do crime
Esse tipo não exige nenhuma condição especial do sujeito ativo ou do sujeito passivo. Qualquer pessoa pode ser autor ou vítima desse delito.
Tipo objetivo
O núcleo do tipo é verbo constranger tem o sentido de coagir, violentar, obrigar. (Coimbra, 2002, p. 176) Está presente o sentido de sujeição da vítima à força do agente.
Para que seja típica, a tortura tem que ser praticada com violência ou grave ameaça. A violência (vis corporalis) significa o emprego da força física sobre o corpo da vítima, com a qual se anula sua resistência. (Silva Franco, 1997, p. 63) A grave ameaça (vis compulsiva) é a chamada violência moral, com a qual se promete um mal futuro e grave à vítima ou a alguém conhecido dela. (Coimbra, 2002, p. 176)
Como crime material, exige, também, o tipo, a produção do resultado “sofrimento físico ou mental”. O resultado é o sofrimento e não eventual lesão corporal. A comprovação do sofrimento é algo extremamente impreciso. O sofrimento físico em regra pode ser provado, mas nem sempre, pois “vários sofrimentos físicos podem ser infligidos sem que deles decorram vestígios” (Silva Franco, 1997, p. 176). Já o sofrimento mental é imensurável, não pode ser constatado com a precisão que se exige de um tipo penal. Sua ocorrência depende muito da sensibilidade individual da pessoa constrangida. A crítica à redação do tipo decorre do princípio da taxatividade, porquanto com essa expressão, a lei penal não cumpre sua função de coibir o arbítrio e de garantir a liberdade humana. Uma lei penal, para não vulnerar o princípio da legalidade, deve ser taxativa, ou seja, estabelecer com precisão os limites da conduta típica. O princípio da legalidade é expresso pela Constituição: “não há crime sem lei anterior que o defina” (art. 5o, XLIX). Definir é estabelecer com precisão a conduta típica, sendo vedado o uso de expressões ambíguas, vagas e indeterminadas (Nabuco Filho, 2004, passim. Batista, 1999, p. 78). Por essa razão, a lei recebe a severa crítica de Silva Franco, para quem a expressão tem um “conceito extremamente poroso”, que “flutua no ar”: “Uma ação criminosa é, no entanto, um acontecimento empírico que deve ser taxativamente descrito e não um acontecimento cujo preenchimento decorra de uma avaliação pessoal do juiz. A locução ‘sofrimento mental’ constitui, portanto, uma cláusula típica de caráter tão genérico que põe em risco o princípio da legalidade.” (Silva Franco, 1997, p. 62. Shecaira, 1997, p. 2.)
Afirmando que o “legislador não utilizou a melhor técnica”, Coimbra aponta o “indeterminismo de texto legal”, que “chega, até mesmo, a ofender o princípio da taxatividade.” (Coimbra, 2002, p. 178)
A precária técnica legislativa, portanto, cria uma grande dificuldade de interprestação.
Tipo subjetivo
O crime de tortura só pode ser praticado com dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de produzir, mediante violência ou grave ameaça, sofrimento físico ou mental. Além do dolo, o tipo exige um dentre os três elementos subjetivos do tipo, expressos nas alíneas “a”, “b” e “c”. Tratando-se de elemento subjetivo, obviamente, não é necessário que o escopo do agente se concretize, basta que haja a finalidade, nos dois primeiros, ou o motivo no último (Silva Franco, 1997, p. 63).
a) para obter informação ou confissão: Trata-se da chamada tortura indagatória, (Días Pita, 1997, p. 40) na qual o fim é a obtenção de uma informação (como p. e.x., onde se encontra determinado objeto ou a res furtiva) ou a confissão, que é a admissão de que o torturado praticou determinado delito ou contravenção penal. Essa última modalidade é a tortura que ocorre com mais freqüência, na qual o agente é obrigado a produzir prova contra si. A confissão pode ser da vítima (a lei aqui se refere à vítima da tortura e não do crime que se investiga) ou de terceira pessoa.[2] Nessa última hipótese, uma pessoa é torturada com o fim de que outra confesse. Assim, há a tortura direta, quando se aplica o sofrimento na pessoa da qual se pretende a confissão, bem como a tortura indireta, na qual o sofrimento recai em uma pessoa, mas se pretende retirar informação de outra (Coimbra, 2002, p. 182).[3]
b) para que o torturado venha a cometer crime: A tortura é o crime-meio com o qual se pretende que o torturado venha a cometer certo delito. Ressalte-se que a lei fala em “ação ou omissão criminosa”, de modo que não haverá o crime de tortura se a violência é empregada com o fim de que o indivíduo pratique contravenção penal. Ocorreria tal delito, na hipótese em que um chefe de quadrilha constrangesse um membro do bando que se recusasse a praticar determinado crime (Silva Franco, 1997, p. 64).
c) por motivos discriminatórios: Nesta hipótese a lei exige que a tortura seja motivada por discriminação racial ou religiosa. Trata-se de motivo e não finalidade, de modo que não é necessário que a tortura vise obrigar a vítima a realizar uma ação ou omissão, ao contrário do que já se afirmou. (Barros, 1997, p. 237) A lei usou a expressão “em razão” indicando claramente que se trata de motivo. Esse dispositivo merece duas críticas. A primeira é a sua estranheza, já que não há notícias no Brasil de tortura cometidas por intolerância racial ou religiosa. Por outro lado, se o legislador entende necessário tipificar tal espécie de tortura, não há porque restringi-la à discriminação religiosa ou racial, deixando fora da tipicidade outras discriminações como a regional ou por opção sexual, por exemplo. Assim, se alguém for torturado porque é de determinado estado do país ou porque é homossexual, a conduta é atípica.
Consumação e tentativa
A consumação do crime de tortura ocorre no momento em que se dá o sofrimento físico ou mental, independentemente da ocorrência do objetivo do agente. É possível a tentativa, já que se trata de crime plurissubsistente. (Coimbra, 2002, p. 179)
Tortura-castigo
Art. 1º Constitui crime de tortura:
(…)
II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena – reclusão, de dois a oito anos.
Bem jurídico
Sujeitos do crime
Ao contrário da tortura descrita no inciso I, esse tipo descreve um crime próprio, que exige condição especial do sujeito ativo, bem como do sujeito passivo. O sujeito passivo tem que estar sob guarda, poder ou autoridade. Para o Direito Penal, “guarda” compreende, além da situação em que alguém fica sob proteção de outrem, por força de lei ou decisão judicial, como também a situação fática que leva a pessoa a ficar responsável por outra (Silva Franco, 1997, p. 61). “Autoridade” é aquele que exerce cargo, emprego ou função pública (Silva Franco, 1997, p. 61). Para Barros, autoridade pode derivar de relação do direito privado, como diretor de colégio em relação aos alunos. (Barros, 1997, p. 238) Poder indica uma situação de sujeição entre autor e vítima. (Silva Franco, 1997, p. 61)
Tipo objetivo
O verbo submeter tem o sentido de “subjugar, vencer, dominar, avassalar, domar, sujeitar, subordinar”. (Fernandes, 1984, p. 795). De modo que é empregado como sinônimo de constranger. Aliás, é incompreensível que o legislador tenha usado verbos distintos, se não há diferença entre as condutas.
Os meios são os mesmos previstos no inciso I, comentados anteriormente.
O resultado típico é o mesmo do tipo anterior, sofrimento físico ou mental, só que acrescido do adjetivo intenso, de modo que nesta modalidade de tortura é imprescindível que o sofrimento, físico ou psicológico, seja intenso. Pois bem, por que no inciso I, o sofrimento não precisa ser intenso? Qual seria a razão para que o legislador tenha distinguido? A rigor, parece que se trata de mera falha de redação, o que confirma que a lei é de péssima técnica legislativa.
Tipo subjetivo
Além do dolo, há o elemento subjetivo do tipo, que é o fim de castigar ou aplicar medida preventiva. Castigo é a punição imposta em razão de uma conduta faltosa. Medida preventiva é aplicada para que o sujeito não venha a praticar determinadas condutas. Se a tortura for gratuita, sem um fim concreto, não haverá esse delito.
Distinção do crime de maus-tratos
O crime de maus-tratos (art. 136, CP) — na hipótese que se confunde com este delito de tortura — se configura com a exposição a perigo da vida ou da saúde de pessoa sob autoridade, guarda ou vigilância, abusando de meios de correção ou disciplina. A conduta do pai que usa violência contra o filho caracteriza crime de tortura ou maus-tratos? Qual é o limite que separa o crime de maus-tratos do delito de tortura? Dir-se-á que a diferença é que na tortura se exige o intenso sofrimento físico ou mental, porém tal argumentação nada soluciona, já que “intenso” é adjetivo demasiadamente vago de modo a não ser suficiente para a distinção. A rigor a solução do caso concreto vai depender do arbítrio judicial. Cada pessoa terá uma concepção puramente pessoal sobre qual o limite que separa o crime de maus tratos do de tortura.
Consumação e tentativa
A consumação do crime ocorre no momento em que ocorre o sofrimento físico ou mental, sem necessidade de qualquer lesão. A tentativa é possível, desde que o agente tenha iniciado a execução do crime, mas não tenha causado, por razões alheias a sua vontade, o intenso sofrimento físico ou mental.
Tortura do preso
§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
Bem jurídico
Sujeitos do crime
Esta é a tortura praticada contra presos e ou pessoas submetidas a medida de segurança. O sujeito ativo é qualquer pessoa, não exigindo a lei qualquer condição especial. Quanto ao sujeito passivo, contudo, só poderá ser aquele que se encontrar em prisão — qualquer que seja sua espécie: pena privativa de liberdade (reclusão, detenção ou prisão simples), prisão provisória ou prisão civil (Silva Franco, 1997, p. 62) — ou cumprindo medida de segurança.
É injustificada a ausência de pessoa cumprindo medida sócio-educativa. Aquele que estiver internado, p.ex., não é sujeito passivo desta modalidade de tortura. Poderia ser objetado se é possível interpretar que prisão abrange a internação, já que nesta também há restrição da liberdade? A resposta é não! Por mais que seja lamentável a falha legislativa, ao jurista cumpre interpretar a lei, mediante um processo cognitivo, e não impor sua vontade sobre a lei. Uma interpretação válida no Direito Penal é aquela que não extrapola o conteúdo semântico das palavras da lei. A lei usa a palavra prisão, e a medida sócio-educativa não faz parte de um dos sentidos possíveis desse vocábulo, que tem um sentido técnico bem definido. Assim, por mais que seja lamentável, o adolescente internado não é sujeito passivo desta modalidade típica de tortura.
Tipo objetivo
A lei não exige como meio de prática deste delito a violência ou grave ameaça, embora não os exclua. Com efeito, é perfeitamente possível que se imponham graves sofrimentos mentais sem o emprego de violência ou grave ameaça. É preferível essa tipificação. São vários os meios que podem configurar tal delito: privação de alimentação, de água ou de sono; cerramento em solitária; colocação do preso em celas insalubres, sem água e sem vaso sanitário; jogar comida no vaso sanitário, onde o preso deverá comer, se não quiser morrer de inanição, dar notícias falsas de extrema gravidade (muito usada no regime militar), ou obrigar o sujeito a contemplar cadáver. (Días Pita, 1997, p. 42) Ou, como no relato de fato ocorrido na repressão da ditadura militar, em que uma mulher “nua, foi obrigada a desfilar na presença de todos” (Brasil: nunca mais, 1985, p. 47), impondo à vítima gravíssimo sofrimento mental, sem usar a violência ou grave ameaça. Desde que cause sofrimento físico ou mental se o ato não for autorizado por lei, estará configurada a tortura.
Assim como nos tipos anteriores, exige-se o resultado sofrimento físico ou mental, sem o qual não haverá crime. Trata-se, portanto, de crime material. (Nucci, 1999, p. 260)
Tipo subjetivo
O tipo subjetivo é composto exclusivamente do dolo, sem elemento subjetivo do tipo. Dentre os três tipos de tortura, este é o único que não menciona uma finalidade do agente. Este tipo contempla, conforme nomenclatura da doutrina estrangeira, a tortura gratuita, ou seja, aquela que é pratica sem qualquer finalidade específica. Note que a ausência de fim específico desnatura os crimes anteriores (incisos I e II).
Consumação e tentativa
Omissão frente à tortura
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
Noção
Pretendendo atender o disposto no art. 5º, XLIII, CF, que preceitua que também deverá responder por crime de tortura aquele que, podendo evitá-la, tiver se omitido. (Mirabete, 1997, p. 477)
Aqui, a lei pune com detenção de um a quatro anos — pena bem mais branda que a forma principal —, tanto quem concorre para a prática de tortura, mediante omissão, como quem deixa de investigar sua ocorrência.
Sujeitos do crime
Há que se fazer a distinção entre aquele que tinha o dever de evitar e o que tinha o dever de investigar.
Embora, em análise superficial, pareça que só o funcionário público pode ser sujeito ativo da primeira modalidade de omissão (de evitar), o tipo não restringe, nem explicita nem implicitamente, a prática do crime ao funcionário. Se na hipótese do inciso II, o pai ou a mãe podem figurar como sujeito ativo de tortura, é inegável que a omissão de um frente à conduta ativa de outro, configura a primeira modalidade de omissão. Assim, se o pai inflige intensos sofrimentos físicos ao filho e a mãe se omite, por ter dever legal de impedir o resultado, desde que fosse possível evitar, a mãe pratica o crime do § 2o.
Quanto à segunda omissão (de apuração), o sujeito ativo somente pode ser o funcionário público, que tem o dever de apurar a conduta criminosa.
Tipo objetivo
Bastante equivocada é a definição de crime omissivo. (Mirabete, 1997, p. 477)
A rigor, trata-se da mesma regra do art. 13, § 2o, “a”, que considera a omissão relevante quando o sujeito tinha o dever legal de cuidado, proteção ou vigilância. Embora esse § 2o da lei, seja mais sucinto descrevendo como sujeito ativo quem tinha o dever de evitar a tortura, o fato é que são disposições idênticas.
O § 2o tipifica duas hipóteses de omissão: uma imprópria (quando tinha o dever de evitar) e outra própria (quando tinha o dever de apurar), cominando a pena de 1 a 4 anos de detenção. Quanto à omissão imprópria, resta claro que a lei estabeleceu uma distinção injustificada com a regra do Código Penal.
De acordo com o art. 13, § 2o, I, quem tem o dever legal de impedir o resultado, ao se omitir concorre para a prática do crime, respondendo às penas a ele cominadas. Desse modo, a omissão, p. ex., de um delegado de polícia, que não impede a prática da tortura que sabe estar acontecendo, lhe acarretaria a sanção cabível ao crime de tortura, se prevalecesse a regra do art. 13, § 2o, I, CP. Contudo, como prevalece regra especial da lei, ao invés da pena correspondente à tortura, o omitente (mesmo tendo concorrido, com sua omissão, com a prática do crime) será apenado mais levemente. Tal fato, para Mirabete, significa a “quebra” do “sistema penal brasileiro quanto à teoria do crime.” (Mirabete, 1997, p. 477) Por outro lado, no mesmo § 2o há a definição de um crime omissivo próprio, representado pela omissão quando o agente tem o dever de apurar a tortura. Com isso, a lei equipara situações desiguais, porquanto quem se omite podendo evitar, concorre para a prática do crime, enquanto quem se omite de apurar, apenas praticaria uma espécie de prevaricação, sem o a exigência do elemento subjetivo. Em tal modalidade, a omissão é própria porque não concorre com o resultado.
Tipo subjetivo
Consumação e tentativa
Formas qualificadas pelo resultado
§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
As formas qualificadas pelo resultado lesão corporal grave ou morte configuram crimes preterdolosos. Assim, para que haja tal delito, o resultado não pode ter sido causado dolosamente. Ou seja, se houve dolo (direto ou eventual) no resultado morte, haverá crime de homicídio.
Quando houver tortura e morte, há três possibilidades:
a) tortura qualificada pelo resultado morte: sendo um crime preterdoloso, ocorre quando o sujeito tem dolo na tortura e culpa no resultado morte. (Jesus, 1999, p. 68. Bitencourt, 2003, p. 71) O agente está torturando e a morte ocorre sem que ele tivesse intenção ou sem que assumisse o risco de provocar tal resultado. O resultado morte é uma conseqüência não dolosa da tortura empregada. (Silva Franco, 1997, p. 65)
b) homicídio qualificado pela tortura: dá-se na hipótese em que o indivíduo age com dolo no resultado morte e a tortura é o meio escolhido pelo autor para atingir tal desiderato. Se, ao torturar alguém, o sujeito age com animus necandi, deverá responder pelo crime de homicídio qualificado pela tortura.” (Bitencourt, 2003, p. 71) Ou seja, se desde “o início de sua atividade delitiva tivesse o intento de matar a vítima e tivesse empregando a tortura para atingir esse objetivo.” Da mesma forma, se ao torturar, o agente atua com dolo eventual no resultado morte, o crime será de homicídio qualificado. (Coimbra, 2002, p. 193)
c) concurso material de tortura e homicídio: ocorre na hipótese em que há dolo de torturar e depois advém o dolo de matar. Ou seja, o agente tortura e depois decide matar a vítima: (Bitencourt, 2003, p. 71) “durante a tortura o agente resolve matar a vítima, p.ex., a tiros de revólver” (Jesus, 2009, p. 69) Obviamente, em tal caso, para que não ocorra bis in idem, o homicídio não terá a qualificadora do meio (tortura); mas poderá ser qualificado por outras circunstâncias, como motivo ou forma de execução.
Causas de aumento de pena
4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I – se o crime é cometido por agente público;
II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;
III – se o crime é cometido mediante seqüestro.
Cometido por agente público
Esta causa de aumento de pena não ocorre na hipótese em que o agente omite a apuração da tortura, porquanto somente o funcionário público pode praticar aquele crime; ocorreria bis in idem se se admitisse esta causa de aumento de pena. (Nucci, 1999, p. 261)
Especial condição da vítima
Criança: prevalece a definição do ECA, criança é o menor de 12 anos. Gestante: estando grávida a mulher, aplica-se a majorante, independentemente do tempo, mas desde que o torturador saiba da gravidez ((Nucci, 1999, p. 262— Coimbra, 2002, p. 194) Portador de deficiência: qualquer que seja a deficiência, física ou mental. Adolescente: é o menor de 18 e maior de 12 anos. Maior de 60 anos.
Mediante seqüestro
É o meio para a prática de tortura, com o qual a vítima não pode oferecer resistência, por encontrar-se subjugada. Para que haja esse aumento, é necessário que o seqüestro se limite ao meio para a tortura, pois se for feito sem esse fim e ocorrer dissociado da tortura — quer porque tenha começado bem antes, quer porque permaneceu após a tortura — haverá concurso material entre os crimes de tortura e de seqüestro (art. 148). (Silva Franco, 1997, p. 67. Coimbra, 2002, p. 195)
Efeitos da condenação
§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.
Trata-se de efeito automático da condenação, que independe de expressa declaração na sentença, (Mirabete, 1997, p. 480) de motivação ou da duração da pena (Silva Franco, 1997, p. 67). Não cabe ao juiz decidir se aplica ou não o efeito da condenação, mas lhe cumpre apenas decretar a perda do cargo ou função. (Coimbra, 2002, p. 196) Está sujeito a tal efeito quem for condenado por qualquer uma das figuras típicas (art. 1o, I e II, § 1o e § 2o).
Além da perda do cargo, em razão da “interdição”, o condenado não poderá ingressar ou retornar ao serviço público, por concurso, nomeação ou eleição, no prazo equivalente ao dobro da condenação.
Fiança, graça ou anistia
§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
Trata-se de mera repetição do inc. XLIII do art. 5o, CF. A lei dos crimes hediondos proíbe — além da fiança, graça e anistia — a concessão da liberdade provisória. Tal vedação não consta desse § 6o, de modo que para o crime de tortura é admitida a liberdade provisória (Silva Franco, 1997, p. 67. (Coimbra, 2002, p. 197)
Regime inicial de cumprimento de pena
§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.
A Lei de Execução Penal (lei 7.210/84) estabelece que o cumprimento da pena objetiva a “harmônica integração social do condenado”. A progressão do regime nada mais é que um instituto que tem essa finalidade. A progressão de regime permite que o preso inicie o cumprimento da pena em regime mais severo e, segundo seu mérito (art. 33, § 2o, CP), seja transferido para o mais brando. Desse forma, se o condenado inicia o cumprimento em regime fechado, será transferido para o semi-aberto e depois para o aberto. Para a progressão são necessários dois requisitos: o objetivo (cumprimento de 1/6 da pena) e o subjetivo (comportamento do condenado).
A fixação do regime inicial, para os demais crimes (salvo os hediondos) é feita de acordo com o art. 33, § 2o, CP. O condenado a pena não superior a 4 anos, desde que não reincidente, poderá iniciar o cumprimento da pena em regime aberto, de acordo com a regra do Código Penal.
Todavia, a lei de tortura adota uma sistemática própria: nem segue a dos crimes hediondos (cumprimento integral em regime fechado), nem a do Código Penal (possibilidade de iniciar o cumprimento em regime aberto ou semi-aberto).
Condenado por qualquer um dos crimes de tortura (salvo a conduta omissiva do § 2o) terá de iniciar o cumprimento em regime fechado. Trata-se de regime inicial obrigatório: independentemente de eventual reincidência, das circunstâncias subjetivas ou da quantidade da pena, o regime inicial de cumprimento da pena será o fechado.
Por outro lado, ao contrário dos crimes hediondos, o condenado por crime de tortura terá direito à progressão do regime. A lei estabelece que o condenado “iniciará o cumprimento da pena em regime fechado” e não que ela “será cumprida integralmente em regime fechado” (art. 2o, § 1o, da Lei dos Crimes Hediondos).
Assim, para os condenados por crime de tortura, prevalece a regra da Lei de Execução Penal, quanto à progressão do regime. Iniciada a pena em regime fechado, o condenado, após cumprir 1/6 da pena, se tiver bom comportamento, progredirá para o regime semi-aberto (art. 112, LEP). Do regime semi-aberto, após o cumprimento de mais 1/6 da pena, o condenado será transferido para o aberto.
Já quanto à condenação pela prática do crime omissivo (§ 2o) não impõe a obrigatoriedade do regime fechado. Para o condenado por esse crime, valerá a regra do art. 33 do CP. Tratando-se de detenção, o cumprimento será possível apenas nos regimes semi-aberto ou aberto (art. 33, caput, CP). Dessa forma, pela quantidade da pena (máximo igual a 4 anos), o reincidente obrigatoriamente iniciará no semi-aberto, enquanto que o não reincidente poderá iniciar no semi-aberto ou no aberto, dependendo das circunstâncias judiciais do art. 59, CP.
Extraterritorialidade condicionada
Art. 2º O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira.
A lei adota o princípio da extraterritorialidade condicionada. São duas as condições alternativas: que a vítima seja brasileira ou que o autor da tortura esteja em território brasileiro.
Vigência
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Revogação
Art. 4º Revoga-se o art. 233 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente.
Trata-se de revogação expressa do art. 233, do ECA, que tipificava a tortura cometida contra criança ou adolescente, que estivesse sob autoridade, guarda ou vigilância do agente.
A revogação acabou com a celeuma em torno da inconstitucionalidade do referido art. 233, por violação ao princípio da taxatividade, corolário da legalidade. O STF havia proferido decisão, por seis votos a cinco, no sentido de que não seria inconstitucional o dispositivo. (HC 70.389-5/SP) De qualquer modo, era incontestável a precariedade da redação do texto revogado, que se limitava a tipificar o ato de submeter a tortura, sem definir o que seria esta.
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* Observações sobre a tortura. prefácio de Dalmo de Abreu Dallari; tradução Federico Carotti. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. . Esta obra, escrita entre 1770 e 1777, e publicada em 1804, relata um grave processo criminal ocorrido em Milão. Em 1630, naquela cidade, uma grande peste dizimou dois terços da população, colocando a cidade a mercê de salteadores que se aproveitavam da catástrofe. Chega, então, à cidade um despacho do rei Felipe IV, informando que quatro homens foram vistos saindo de Madrid, com ungüentos para provocar a peste. Com isso, disseminou-se a idéia de que a peste era criada artificiosamente por médicos, com intenção de cobrar por suas consultas. Nesse clima de comoção social, por ter sido visto andando próximo ao muro, em dia de chuva, Guglielmo Piazza foi acusado de espalhar peste através de ungüentos, sendo, então, submetido à tortura. Verri, descreve com detalhes os tormentos impostos contra o “paciente”, demonstrando a pesquisa feita para a composição do livro, inclusive com a transcrição dos gritos, registrados pelo escrivão. Após dois dias de interrogatório, acusa o barbeiro Gian Giacomo Mora. Este também submetido à tortura, confessou. Foram ainda acusados Gian Stefano Baruello e outros réus. Foram todos condenados a morte com suplícios. Posteriormente, a casa do barbeiro Mora foi destruída e no lugar foi erguida a chamada coluna infame, com dizeres em latim. Obviamente, não havia crime nem criminoso, já que a peste nada mais era que uma doença. Todavia, vítimas de tortura, várias pessoas confessaram um “crime” inexistente.
[2] jorge amado
[3] Como na monumental trilogia de Jorge Amado, Subterrâneos da liberdade, que trata sobre a repressão política do Estado Novo, na qual o delegado tortura uma criança de pouca idade, para que sua mãe confesse a prática de atos subversivos (Subterrâneos da liberdade: tomo III – A luz no túnel. 18a ed., São Paulo: Livraria Martins, 1970, p. 59-60).